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A CAUSA REAL NO DISTRITO DE AVEIRO

A CAUSA REAL NO DISTRITO DE AVEIRO
Autor: Nuno A. G. Bandeira

Tradutor

quarta-feira, 16 de agosto de 2023

PARA “ENTERRAR” DE VEZ O “QUADRADO” DA BATALHA DE ALJUBARROTA (VERSÃO REVISTA)

Iluminura referente à Batalha de Aljubarrota, retratada em postais dos CTT há uns anos atrás.
 
Como o mito do quadrado de Aljubarrota continua popular, sendo repetido de forma acrítica e irresponsável em eventos de "recriação" como a Viagem Medieval em Terra de Santa Maria ou mesmo em algumas publicações, considerámos que seria uma boa ideia voltar ao tema no aniversário da famosa batalha. Sem mais delongas, passemos ao texto propriamente dito.
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Hoje é dia 14 de Agosto… Dificilmente haverá, provavelmente, data mais reconhecida na História do Portugal medievo e tão (re)construída na memória colectiva do povo português desde o fim de tarde deste mesmo dia, há 638 anos, quando a hoste do Mestre de Avis – recentemente aclamado rei de Portugal – venceu o exército luso-franco-castelhano do seu rival pelo trono português, Juan I de Castela. De tantos mitos e narrativas imaginadas pela cultura popular, continuamente partilhadas pela antiga historiografia e inclusive por programas escolares ainda hoje, um dos mais conhecidos trata-se da chamada “táctica do quadrado” de Aljubarrota: um dispositivo supostamente adoptado pela hoste anglo-portuguesa na batalha desse dia de 14 de Agosto de 1385, não obstante o facto de esta tese ter sido sobejamente desmentida há várias décadas pelo trabalho arqueológico de Afonso do Paço e mais tarde a nível historiográfico pelo Professor João Gouveia Monteiro.
Fixando-nos neste aspecto específico (e tantos outros há ainda para contar sobre a batalha e tudo o que a rodeou), a disposição dos portugueses no planalto de São Jorge, onde se desenrolou a batalha num terreno elevado escolhido pelo Condestável Nuno Álvares Pereira e sua hoste - pejado de obstáculos naturais (barrancos e cursos de água que impediam ataques de cavalaria pelos flancos) e artificiais (escavação de fossos, valas, covas-de-lobo e colocação de abatizes e paliçadas) que afunilaram o avanço inimigo ao longo do único percurso possível até chegar à vanguarda lusa - foi pensado dentro de um plano excepcionalmente bem executado para atrair os franco-castelhanos a uma armadilha, enganando-os em relação à verdadeira vantagem dessa mesma posição. Dentro deste plano, seguindo o que eram as práticas correntes da táctica militar nesse século XIV, e tendo em conta os constrangimentos de desproporção numérica e o tipo de combatentes – fortemente relacionado com as origens sociais da hoste portuguesa - em comparação com o exército do lado contrário, nenhum “quadrado” faria sequer sentido que fosse aplicado em Aljubarrota, nem nenhuma da documentação ou cronística da época refere essa disposição. Tendo em conta as evidências documentais e arqueológicas que veremos em seguida, esta ideia não passa de uma má interpretação das palavras de Fernão Lopes quando escreve que “com esta az cujas pontas cerravam com a vanguarda” para descrever a rectaguarda (sic).
SE NÃO HOUVE “QUADRADO”, COMO SE APRESENTARAM EM BATALHA?
Visto que os acontecimentos históricos não acontecem no vazio, também a batalha de Aljubarrota foi um produto do seu tempo, reproduzindo tácticas semelhantes a outros confrontos europeus de décadas anteriores que melhor se adaptavam às condicionantes explicadas acima, equilibrando as forças e até eliminando as vantagens de um inimigo numericamente superior que fazia uso do choque de cargas de cavalaria para provocar o pânico e abrir brechas nas linhas dos oponentes. Tais antecedentes onde o novo paradigma de exércitos compostos quase exclusivamente por combatentes apeados conseguem sair vitoriosos contra cargas de cavaleiros pesadamente armados surge em eventos quase simultâneos, ocorridos em regiões diferentes, e com nuances entre si nas batalhas de Courtrai (1302), Bannockburn (1314), Morgarten (1315), Halidon Hill (1333) e especialmente com o aperfeiçoamento do chamado modelo inglês de combate na Guerra dos Cem Anos, especificamente em Crécy (1346), Poitiers (1356), e mais tarde visto pela primeira vez na Península Ibérica em Najera (1367). Finalmente, Aljubarrota acabou por se tornar em mais um exemplo de aplicação extremamente bem sucedida desta nova forma de combater.
Tendo em conta a dificuldade de cálculo do número de efectivos em ambos os exércitos, escolhemos quantificar entre duas ordens de grandeza a composição de cada linha de batalha para facilitar a compreensão, não devendo ser tomados como valores absolutos. Assim sendo, apresentando-se apeada, a hoste portuguesa terá provavelmente formado uma vanguarda de duas ou três filas compostas por cerca de 600 a 1000 homens de armas e duas alas (uma de cada lado), ligeiramente avançadas em relação às linhas de vanguarda e organizadas com besteiros lusos e arqueiros ingleses (maioritariamente galeses, na verdade) em número a rondar entre os 200 e os 500 homens para cada ala.
O cronista castelhano Lopéz de Ayala refere inclusive como: “los enemigos tienen sua vanguarda e dos alas juntas en uno, en que han grand gente de peones e ballesteros.” (Crónica de Don Juan, rey de Castilla, Año VII.º, cap. 14). Uns 150 a 200 metros atrás encontrava-se a rectaguarda, um segundo conjunto de linhas liderada pessoalmente pelo rei D. João I acompanhado da sua guarda pessoal e de umas 700 “lanças”. Como referido por Ayala, um número elevado de peões garantia também o contacto entre a vanguarda e as alas, engrossando cada uma destas unidades. Fernão Lopes confirma esta disposição em duas linhas paralelas, uma mais avançada com a vanguarda e as alas, e outra mais recuada para socorrer a primeira linha, caso necessário, referindo que o rei ordenou a sua “pouca” gente em “duas pequenas aazes, ca nom auya hij pera mais” (Lopes, CDJ, 2ª Parte, Cap. 38).
Mais para norte destas duas linhas paralelas encontrava-se a “carriagem”, ou seja, a logística que acompanhava a hoste e lhe fornecia os mantimentos e a manutenção dos equipamentos. Composta por pagens, cavalos de reserva, animais de carga e carroças de transporte dispostos como num “curral”, no dizer do cronista Fernão Lopes, estas unidades logísticas estavam também bem protegidas por peões e besteiros, como se comprovou pela resposta vitoriosa dada a uma tentativa de flanqueamento, já na parte final da batalha. É também possível que, como executado pelos Ingleses em Crécy e pelos Hussitas nas batalhas de Sudomer (1420) e Vitkov (1421), as carroças portuguesas tenham ajudado a fortificar esta posição.
OBJECTIVO: AFUNILAR O INIMIGO E CRIAR O CAOS
Este plano que não só atraia os franco-castelhanos para a peleja antes que a maior parte do seu exército em marcha chegasse ao local de batalha (reduzindo assim o efectivo inimigo que poderia estar preparado para combater) mas que também “afunilava” o ataque, encurtando num espaço mais facilmente defensável as maiores linhas de vanguarda inimiga, permitia que a vanguarda portuguesa, menos numerosa, ganhasse vantagem sobre o inimigo numericamente superior. E foi nessa mesma ratoeira que os franco-castelhanos caíram, resultado de uma deficiente análise prévia da posição portuguesa. Assim, optando a cavalaria francesa - contra o conselho de vários guerreiros mais experientes – por atacar primeiro e em força, acabaram recebidos não só por uma chuva de tiros de funda, besta e arco, mas também pelas covas e fossos que faziam cair os cavalos e entorpeceram o ataque.
Nesta batalha a “dois tempos”, e após o fracasso desta primeira tentativa de choque, o corpo principal da hoste castelhana avançou de seguida, primeiro a cavalo até a uma certa distância da vanguarda portuguesa e cruzando o resto a pé, depois de se terem apercebido que o estrangulamento natural do planalto e as armadilhas artificiais não lhes permitiria continuar nas montadas. A partir daí só piorou para os castelhanos: obrigados a um combate corpo-a-corpo extremamente violento, a primeira “onda” de ataque até chegou a romper a vanguarda lusa, mas esta foi prontamente fechada com o auxílio da rectaguarda, chegando o rei D. João I a combater no meio da refrega “cõ tal vontade como se fosse hum simpres cavaleiro desejoso de ganhar fama” (Lopes, CDJ, 2ª Parte, Cap. 107).
Esta massa humana castelhana acabou então fechada e esmagada entre a vanguarda portuguesa - que os dizimava com armas de mão como as fachas, maças ou martelos e os empurrava para as covas e para os ribeiros - e os seus camaradas atrás que continuavam a avançar. Daí até se instalar o pânico foi um ápice: vendo que a batalha se transformava num massacre, os castelhanos começaram a fugir, procurando salvar as suas vidas no meio de todo aquele caos. Perseguidos, muitos mais castelhanos seriam literalmente atropelados e espezinhados na fuga pelos portugueses a cavalo, conforme mostram os indícios de esmagamento presentes em ossos humanos encontrados numa vala comum perto do local da batalha, aquando das escavações arqueológicas lideradas por Afonso do Paço entre 1958 e 1960 (ver fotos), ou mortos pelos populares das aldeias e vilas próximas do local da batalha, que “caçavam” os combatentes que tinham conseguido escapar.
Concluindo, o que se depreende dos factos referentes a Aljubarrota é a de que a execução do plano pensado pelo Condestável Nuno Álvares Pereira, sem dúvida com influências do modelo antes executado pelos ingleses na Guerra dos Cem Anos, permitiu uma retumbante vitória portuguesa nesse fim de tarde quente de Agosto, transformando as parcas hipóteses de sucesso num verdadeiro “jogo, set e partida” que permitiu a consolidação de uma nova dinastia no trono português.
- PEDRO ALVES

Iluminura da batalha numa cópia das Crónicas de Jean Froissart (manuscrito BNF fr 2646 na Biblioteca Nacional de França / 1470-1475) retratando a fuga dos castelhanos.


O percurso dos dois exércitos até se encontrarem no campo de batalha.
O exército castelhano entrou em Portugal com um objectivo bem definido: voltar a cercar Lisboa, como em 1384, mas desta vez com uma hoste mais numerosa. A cidade decerto não resistiria a mais um cerco e só restava a D. João I e Nuno Álvares Pereira barrar o caminho da hoste inimiga e forçá-la a uma batalha campal. Todo o plano de Aljubarrota foi concebido nesse sentido, atrair os adversários para um combate no local e termos escolhidos pelos portugueses.
Fonte: (Monteiro, 2003: p. 80).

Disposição das duas hostes no campo de batalha. Após terem iludido os castelhanos numa primeira posição virada a nordeste, os portugueses inverteram a sua posição e encaminharam-se para sudoeste, acompanhando o movimento inimigo e fazendo parecer que a segunda posição lusa não era tão forte como a primeira. Infelizmente para os franco-castelhanos, foi puro engano.
Fonte: (Monteiro, 2003: p. 87).

Iluminura da Batalha de Aljubarrota (Século XV). No texto lê-se: "como os franceses da vanguarda do rei de Castela foram mortos pelos portugueses e ingleses".
Fonte: Jean de Wavrin, "Chroniques d'Angleterre".

Primeiro avanço da cavalaria francesa.
Contrariando os conselhos dos guerreiros mais experientes do exército castelhano, e sem o acordo do rei de Castela, os cavaleiros franceses atacaram a vanguarda portuguesa, apenas para serem surpreendidos pelas covas, fossos e projécteis disparados pelos besteiros, arqueiros e fundibulários, interrompendo o ataque e eliminando o efeito de choque. A maioria desses cavaleiros foram feitos prisioneiros para, supostamente, serem depois mortos antes do segundo avanço castelhano, para não atacarem os portugueses pelas costas.
Fonte: (Monteiro, 2003: p. 102). 


Segundo avanço castelhano.
Aljubarrota foi uma batalha "a dois tempos", ou seja, após o fracasso da primeira carga de cavalaria francesa, o grosso do exército castelhano avançou de seguida, caíndo na mesma ratoeira: as características do terreno mais os obstáculos colocados no caminho afunilaram o ataque, permitindo aos portugueses concentrar os seus esforços de defesa numa linha inimiga muito mais pequena. A ruptura de uma parte da vanguarda lusa foi compensada pelo avanço da rectaguarda liderada pelo rei D. João I. O ataque dos ginetes castelhanos à "carriagem" na parte final do confronto também não surtiu qualquer efeito.
Fonte: (Monteiro, 2003: p. 110). 

Marcha de um exército medieval.
As movimentações de uma hoste eram geralmente lentas e as linhas acabavam bastante distendidas quanto maior fosse o número de homens. Em Aljubarrota, apenas uma parte da hoste castelhana entrou em combate, visto que a maioria da coluna ainda nem tinha chegado ao local.
Fonte: Chroniques de Hainault, Biblioteca Real de Bruxelas (século XV). 

Fossa escavada no campo de batalha (Centro Interpretativo de Aljubarrota).
As fossas e covas-de-lobo abertas pelos portugueses nas horas anteriores ao ataque permitiram criar uma série de obstáculos que anularam os ataques inimigos.
Fonte: https://commons.wikimedia.org/.../File:Centro_de... 

Covas descobertas nas escavações arqueológicas lideradas por Afonso do Paço entre 1958 e 1960.
Fonte: (Monteiro, 2003: p. 92). 

Fonte: (Monteiro, 2003: p. 93). 

Entre estes restos mortais foram encontrados vários esqueletos de cavalo e muitos dos ossos humanos nem sequer apresentavam nenhuma marca de golpe com armas contundentes ou de lâmina, mostrando que a sua morte se terá devido a sufocação por esmagamento.
Fonte: (Monteiro, 2003: p. 117). 


Entre os restos mortais que evidenciavam marcas de traumatismos, algumas destas mostravam ataques feitos de cima para baixo, provavelmente com as vítimas prostradas ou em fuga.
Fonte: (Monteiro, 2003: p. 118). 

FONTES PRIMÁRIAS:
- AYALA, Pero Lopéz de. “Cronicas de los reyes de Castilla”, Tomo 2, Madrid: en la imprenta de Don Antonio de Sancha, 1780. Livraria da Universidade da Califórnia, Davis. Google Book: https://books.google.pt/books?id=N_5AAQAAMAAJ...
- FROISSART, Jean. “Chronicles of England, France, Spain and the adjoining countries”, London: Henry G. Bohn, York Street, Covent Garden, 1857. Link: https://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k6268142h.texteImage
- LOPES, Fernão. “Crónica d’el Rei D. João I”, Bibliotheca de clássicos portugueses, Lisboa : Escriptorio, 1897-1898. Link: https://purl.pt/416/4/
FONTES BIBLIOGRÁFICAS:
- ENCARNAÇÃO, Marcelo A. Flores Reis (2006). “A Guerra Vista do Chão – (Os conflitos militares em Portugal nos reinados fernandino e joanino observados numa perspectiva local)”, Dissertação de Mestrado em História Medieval apresentada à Faculdade de Letras da Universidade do Porto.
- MONTEIRO, João Gouveia (2010). "A táctica militar na Europa do século XIV. Princípios, antecedentes e inovações". Trabalho apresentado em Colóquio: Nuno Álvares Pereira, Lisboa.
- MONTEIRO, João Gouveia (2009). "Estratégia e risco em Aljubarrota: a decisão de dar batalha à luz do “paradigma Gillingham". Trabalho apresentado em VI Jornadas Luso-Espanholas de História Medieval, A Guerra e a Sociedade na Idade Média, Coimbra.
- MONTEIRO, João Gouveia (2006). “A Batalha de Aljubarrota. Novas Interpretações” in Revista de História da Sociedade e da Cultura 6 – Centro de História da Sociedade e da Cultura da Universidade de Coimbra, pp. 105 - 122. PDF: https://digitalis-dsp.uc.pt/.../A%20Batalha%20de...
- MONTEIRO, João Gouveia (2003). “Aljubarrota 1385 - A Batalha Real”, TRIBUNA DA HISTÓRIA – Edição de Livros e Revistas, Lisboa.
- MONTEIRO, João Gouveia (2003). “NOVA HISTÓRIA MILITAR DE PORTUGAL”. Volume I, Direcção de M. Themudo Barata e Nuno Severiano Teixeira; Coordenação de José Mattoso. Lisboa: Círculo de Leitores, pp. 237-244.
- MONTEIRO, João Gouveia et al. (2001). “Aljubarrota Revisitada”, Coimbra, Imprensa da Universidade. PDF: https://www.academia.edu/37024257/Aljubarrota_Revisitada
- PIRES, Nuno F. Poínhas (2018). “Batalha de Aljubarrota: Novos elementos interpretativos”, Tese de Doutoramento em História, Especialidade em Arqueologia na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. PDF: https://run.unl.pt/handle/10362/63267

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