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A CAUSA REAL NO DISTRITO DE AVEIRO

A CAUSA REAL NO DISTRITO DE AVEIRO
Autor: Nuno A. G. Bandeira

Tradutor

terça-feira, 18 de julho de 2023

O ÚLTIMO CZAR

Nicolau II permanece um enigma, dele recebemos a imagem benevolente e santificada que muitos contemporâneos certamente não entenderiam e, provavelmente, olhariam com sarcasmo. Homem de família e homem de fé, destinado a assumir as rédias de um império imenso, nas suas mãos repousava um esforço colossal digno de Ivan IV ou de Pedro o Grande, infelizmente não esteve à altura do desafio homérico, quase sobre-humano, de levantar uma terra esgotada material e espiritualmente. Foi talvez o homem errado no tempo errado, incapaz de interpretar as necessidades reformistas e mantendo-se firme na manutenção da autocracia.

Quase sempre de forma instintiva os bem intencionados perdem aquele simples desabafo que sói acrescentar que, caso nascesse na Inglaterra, Nicolau II teria dado um bom rei constitucional... não parece plausível! Fosse educado como os primos ingleses, hipoteticamente, talvez o pudéssemos admitir. Conquanto, referimos um homem que, apesar do deficiente manejo do poder, compreendia o desígnio da autocracia e jamais admitiria partilhar o poder ou cedê-lo, não cabia na sua interpretação que o rei reinasse e não governasse. A opinião em relação aos políticos liberais tão pouco conhecia comoções maiores, a desconfiança que lhes movia era proporcional ao ódio às revoluções. Certamente não seria um bom rei à inglesa mais do que um bom autocrata à moscovita. Nascesse noutro tempo, onde conhecesse circunstâncias mais benignas, talvez sobrevivesse ainda que ameaçado no meio da contestação. Foi o destino quem o empurrou para a encruzilhada do Apocalipse.

Reinou sobre o caos e foi devorado pelo caos. No intrincado mundo da burocracia administrativa o Czar movia-se sobre um poder labiríntico. De carácter indeciso e dolente o poder autocrático parecia mais uma fragilidade do que um benefício. Depois das reformas de Alexandre II e do governo de força de Alexandre III, o reinado de Nicolau II converge em tensão. A ansiedade cresce nos espíritos jovens, os assassinatos políticos estão na ordem do dia, impelindo à memória a máxima de que "a Rússia é uma autocracia temperada pelo assassinato".

O sentimento não era novo, desde os Dezembristas, ainda no alvorar do século, aos primeiros niilistas, florescidos no amadurecer do século XIX, aliás bem retratados no romance de Ivan Turgueniev, "Pais e Filhos", a corrente de opinião avançava em desafio às tradições, à religião e à monarquia. O espírito de ansiedade é bem capturado por Dostoievski em romances memoráveis, como "Crime e Castigo", "O Irmãos Karamazov" e "Demónios", este último certamente uma incisiva advertência ao espírito virulento da revolução. Pesaroso e místico Soloviev transporta o seu anticristo à visão apocalíptica que parece predizer o futuro da Rússia.

Neste clima é coroado o jovem Nicolau. Incapaz de reformar o sistema permaneceu um prisioneiro na redoma da autocracia. Num império de nacionalidades cresciam os nacionalismos, e num clima de profundas cisões sociais recrudescia a revolta. Mas a nova rebelião avançava de forma mais perversa, não se tratava apenas da reivindicação social, mas de um propósito ideológico mais sinistro, nesse móbil encontramos o protagonismo de um grupo social que a história reterá como "intelligentsia".

A intelligentsia designava então uma camada social própria, referindo-se ao grupo de intelectuais grandemente saídos da nobreza, que se reuniam para conspirar contra o sistema, isto é, contra a ortodoxia e contra o Czar. Demarcavam-se pelos seus hábitos, pelos seus costumes, pelas suas ideias, constituindo verdadeiramente uma nova subcultura no seio da elite russa, mas que dela se demarcava em repúdio, primando por um retorno às origens, uma vida em comunhão com a classe do campesinato e uma vida em harmonia numa nova sociedade de igualdade. Para alcançar os seus objectivos usam da violência, estão dispostos a matar e a morrer pela sua causa.

O período de maior crise acompanha o desastre da derrota frente ao Japão e aprofunda as diatribes que desvelam a terrível verdade: a capacidade militar da Rússia é fraca, aliás, suficientemente disciplinada para manter a ordem interna, mas face a um conflito externo revelar-se-ia um desastre. O Império na sua dimensão consegue mobilizar milhares para a guerra e pela extensão geográfica logra assegurar a impenetrabilidade da Santa Rússia, mas é em tudo um paradoxo, este gigante caminha com pés de barro, e o rastilho de pólvora que o devorará partirá do próprio interior, mais do que da ameaça exterior.

Das políticas reformistas e modernas, de Witt a Piotr Stolypin, a nova vaga de reformistas promove o rápido desenvolvimento social e económico. Mas todo o progresso transporta no seu seio as consequências inevitáveis da própria destruição, quando não conduzido no zelo da disciplina e na prudência dos estadistas.

A tensão social crescia, as políticas económicas impopulares de Witt acompanhavam o recrudescer dos zemstvo e corpos cívicos cada vez mais reivindicativos. Nicolau II não interpreta as contestações e promove a linha dura da autocracia. Há cada vez mais uma ruptura entre o Estado e a sociedade que dramaticamente agrava a incapacidade de diálogo com as novas reivindicações sociais. Mas foi exactamente a politica de Witt quem fez o Império avançar economicamente, um crescimento que não se repetirá até ás políticas de Estaline em 1930. A produção industrial conhece um crescimento de 8% por ano, muito superior ao dos EUA.

Outro paradoxo que converge na ineliminável tensão: o progresso aumentava os conflitos sociais, o Domingo Sangrento de 1905 seria já um pronúncio. Acompanhando o desenvolvimento industrial e a difusão do proletariado uma nova força política avançava. O marxismo começava a ganhar fileiras entre a intelligentsia e seduzia grupos junto ao proletariado urbano. O Partido Social Democrata dos Trabalhadores Russos foi oficialmente fundado em 1898, mas os círculos marxistas existiam já na capital do Império e difundiam-se entre as camadas letradas. Não estavam completamente contra as reformas perpetradas, afinal o capitalismo aparecia como um mal, mas um mal necessário que aceleraria a revolução comunista.

No manifesto de Outubro o Czar promete reformas políticas, nas quais, diga-se, não acreditava inteiramente. Em 1906 aceita, relutante, constituir a Duma e promulgar uma Constituição. Se a Rússia entrou na era do constitucionalismo liberal permitindo a evolução pacífica, pelo menos até 1914, é discutível. As reformas não pacificaram a sociedade nem o espírito intransigente dos radicais, criando aliás um clima de tensão crescente. O duelo entre a Duma e o Czar criava fricções e a breve promessa liberalizante parecia um devaneio.

Foi Stolypin quem deu novo alento ao regime, face à derrota militar urgia lançar novas políticas e sobretudo promover políticas que amenizassem as tensões sociais. As reformas de Stolypin permitiram desenvolver um sistema de agricultura capitalista, mas foram mais recebidas com revolta por parte do campesinato russo do que com comoção. 1908, tido como um ano relativamente calmo, conheceu um atentado que provocou mais de 1800 funcionários mortos e 2083 feridos, ataque esse motivado por razões políticas. É verdade que os partidos políticos tinham sido legalizados, assim como os sindicatos, mas os sindicatos de ofícios eram geralmente encerrados pela polícia e os membros do partido socialista revolucionário corriam o mesmo risco de serem presos. O próprio Stolypin acabaria também assassinado, em 1911. O século XX acelerava então o seu curso nas terras eslavas e fazia antever o pior.

A entrada da Rússia na guerra de 1914 mobilizou a generalidade da sociedade num sentido patriótico. Lenine, no exílio, constatou como a guerra mais não era do que um conflito imperialista, pelo que aguardava a derrota da Rússia e assim precipitar a guerra civil e a revolução. Não era uma opinião consentânea entre revolucionários, muitos não relutavam em exibir um patriotismo acalentado pela nova vaga bélica. A onda de patriotismo não deixa de ser um sintoma primancial da mobilização das massas, os discursos, os hinos, a aparição do Czar na varanda do Palácio de Inverno ao som do "Deus salve o Czar" transmitia uma sensação de optimismo e de confiança que não mais se repetiria.

Na perspectiva do poder a entrada na guerra faria esquecer a velha derrota e acalentaria uma nova unidade nacional, estavam quase certos, o que não calcularam foi o tempo, a dimensão e o esforço necessário para manter o povo na dianteira desta empresa. Com o passar do tempo, a guerra revelaria a vulnerabilidade do regime e a sua legitimidade tornava-se periclitante. A opinião pública aplaudia as vitórias militares mas não tolerava derrotas, aos poucos, na constatação de que o regime perdia o controlo das circunstâncias, começaram a retirar os apoios à autocracia.

A mística também se apoderou dos factos, a presença de Rasputine terá sido tanto demonizada como mistificada. O mujique inteligente cativou certamente a família imperial com o seu poder de persuasão e carisma quase hipnótico. A hemofilia do jovem herdeiro pesava como uma sina fatal que Rasputine amenizava. Atribuindo ao monge poderes curativos os Romanov acolheram-no como a um sinal divino, mas tal proximidade apenas deixou um lastro de desconfiança entre cortesãos. A nobreza não perdoou o gesto de confiança a um camponês siberiano. Sem que possamos realmente classificar a influência que exercia sobre o Czar, a verdade é que a fama do curandeiro criou uma mítica quase tão grande quanto o ódio que lhe moviam.

Com o avanço da guerra as reformas foram postas de lado. Mas essa mesma teimosia em manter intacta a autocracia revelar-se-ia a sua fraqueza, blindar a autocracia tornou-se mais um exercício de força e de incoerência. Quanto mais procurava exercer a força contra a revolução mais as forças da desordem usavam da violência. Em conflito com as reivindicações o Czar suspende a Duma, em 1915, e assume o comando do Exército. Desloca-se à frente de batalha e deixa o governo nas mãos de alguns escolhidos e da mulher. Deixar o poder nas mãos de uma princesa alemã quando a Rússia combatia a Alemanha revelava uma simples ingenuidade e falta de senso político. A opinião pública exerceu uma feroz crítica contra a Czarina e o seu conselheiro Rasputine, que um grupo de nobres tratariam de liquidar. O seu assassinato foi mais um fenómeno pitoresco, digno de uma tragédia clássica, que contribuiu para o descrédito de uma família deteriorada face à nova opinião pública burguesa e esclarecida.

As exigências da guerra e a intransigência da autocracia arrastariam a Rússia para o abismo. O Estado perdia o controlo na requisição de comida e as conturbações sociais de 1905-6, amenizadas mas não eliminadas, agora ressurgiam em dimensão superior.

Poucos contemporâneos imaginariam então que uma dinastia de trezentos anos pudesse acabar em poucos dias. Mas a insustentabilidade da autocracia revelava-se um fardo demasiadamente pesaroso. Cercado, abandonado e traído, o Czar aceitou abdicar. Ironicamente a sua abdicação foi ilegal, pois violava a Lei da Sucessão de 1797. O último fôlego da autocracia antes de desmoronar parece quase trágico-cómico. A partir desse momento Nicolau passou a caminhar em direcção do abismo, aquele que viria a conhecer numa madrugada de Julho de 1918, em Ecaterimburgo. 

Daniel Sousa




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